Garota da Montanha
Apenas no crepúsculo acordo da enfermidade. O clarão das
lâmpadas elétricas da rua deitava-me pálida aqui acolá. Ainda pensando na morte
de Gregor Samsa e Georg Bendemann, que pensaram com amor na família antes de
sucumbir, e também se autossacrificar no final d’A Metamorfose seguido de O
Veredicto. Pensava e tentava entender por qual motivo Kafka eis de matar todos
os seus personagens. E porque acordei pensando nisso.
O dia chegou, senti o cheiro da terra e ouvi o piar do vento.
Vozes de pessoas fluíam ecoando por debaixo da porta do quarto. A ranjada de
vento dominou o local abriu a janela ferozmente e me fez avistar uma garota no
alto da montanha. Consegui enxergar embaçadamente um véu caído em seu ombro,
pés descalços, suor e muito cansaço. De longe ela parecia me observar. Aquela
cena me fez acordar à vida. E percebi que aquele lugar eu nunca estivera antes.
Levantei-me da cama com muito esforço, olhei para minhas mãos, que estavam
pálidas e muito diferentes. Olhei para cima da porta, lá havia um relógio
antigo com números em romano. Estranho mas, mesmo sabendo decifrar números
romanos, naquele momento eu não conseguia decifrá-los.
Olhei novamente para a janela, a garota permanecia lá, imóvel,
com os olhos voltados para minha direção. Senti um súbito arrepio fluir em meus
braços, a chuva parara e o sol já se manifestava. Olhei meramente para aquela
paisagem. Embaixo da montanha havia um lago, no qual sua água estava suja, tão
preta e podre que era notável a presença de plantas mortas em sua beira. Só
havia montanhas e mais montanhas naquele lugar.
Por um momento senti falta das coisas familiares e quando pensei
em sair do quarto, surgiu um homem por detrás da garota, chegando cada vez mais
perto dela. Carregava consigo um marchado. Ele era magro, estava de calça
preta, camisa xadrez, chapéu chinês e tinha bigode italiano. De repente ouço
choros, seqüência de gritos, vindo por debaixo da porta. Assustada olho para a
montanha novamente, e em fração de segundos o homem empurra a garota montanha
abaixo. – “Jesus!” Gritei. Fixei meu olhar na garota se caindo nas rochas até
chegar ao lago abaixo. Desesperada, corri para abrir a porta, em seguida me
deparo com muitas pessoas chorando baixinho, soluçando, padre rezando...
Ninguém me ver. Ninguém me ouvia gritar! E em meio a todos ouço um homem dizer.
– “Minha filha não!... Ela estava brincando nas perigosas montanhas, e
acidentalmente caiu.” – “... Ou suicidou-se!” diz o padre. Mas eu sabia, eu
sabia. O homem inconformado é o pai da garota, ele tinha bigode italiano e
estava de xadrez. Eu o reconheci. Senti uma forte dor no coração. Desesperada,
corri para o quarto. Na janela havia um clarão atraente e muito forte, tentei
enxergar o lago, mas não achava. Então ouvi uma voz feminina dizer: – “Queridos
pais, mas eu sempre amei vocês!”. O clarão foi vagarosamente transformando-se
em uma breve escuridão sem fim. Total silêncio.
Acordei. Desta vez em meu quarto, em minha cama e minha casa. E
até agora não consigo explicar para ninguém que a menina do lago não era eu. E
que isso não foi um sonho, e sim, a visão de antes da morte.
Hoje entendo porque os personagens de Kafka sempre se
“autossacrificam”. Mas a felicidade é amarga e o sol ilusório. Ninguém pode
deixar de ver que há – como no velho Marchado de Assis – uma gota da baba de
Caim em toda essa felicidade presente.
Sábado, 24 de novembro de
2012 13h36min29
Viver uma história em um sonho, a sensação é de que sua alma se transportou para outro corpo. Eu já presenciei isso espiritualmente.
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